22 de mai. de 2013

UBU - CARLOS BARTOLOMEU

(...)
Aquilo que, imodestamente, assumo como minha encenação, não é somente a materialidade de uma autoria, é realização de desejo, construção e consumação do ato poético.


Na sombra de cada gesto, na intimidade de todo movimento, estava o ato arquitetado em silêncio, (1) com o auxílio de minha própria gestualidade.

A colocação apresenta uma boa dosagem de intensidade e drama, despertando em mim o riso dessa tentação de tecer aproximações com o testemunho de André Breton ao reconhecer em Ubu Rei, de Alfred Jarry, "a encarnação magistral do eu nietzschiano-freudiano, que designa o conjunto dos poderes desconhecidos, inconscientes, recalcados" [VIRMAUX, 1978, p.128]

Atento para auto-ironia, entretanto, admito, o "feliz acaso", as arbitrariedades do inconsciente, (2) que segundo Sábato Magaldi, ao lado de uma lúcida aplicação presta o mesmo serviço à criação teatral.

“Conta Stanislávski que, ao preparar George Dandin, não saia dos clichês habituais. Todos os esforços de penetração do papel não logravam atingir mais que os efeitos exteriores. Até que um traço de maquilagem, feito involuntariamente, mudou a expressão de sua fisionomia, trazendo-lhe a intimidade necessária com a criatura de Molière." [ 2000, p.29]


, No testemunho, reconheço certo parentesco, ao meu modo de trabalhar o texto de Jarry. De o livre desenrolar do inconsciente, e do gosto nunca perdido de brincar, reuni quanto de acaso me era necessário à criação e a fruição desse estado.

Da montagem, considero como ênfase desse processo, a mimesis dos bonecos de luva, o tom acentuado de bufonaria orquestrando os corpos dos atores. Da cena de abertura até ao desfecho da encenação, os trejeitos de bonecos de luva, marionetes e brincadeiras marcaram o palco. Através deles, o cáustico sentimento da solidão de infante cruel, que era Pai Ubu, sua cruel relação com os outros e a vitória inquestionável de sua parvoíce sobre a inteligência, construirão um espelho para nossas consciências. Ubu



"torna-se rei graças a sua tremenda estupidez, à bestialidade sem limites, desligada de qualquer vislumbre de consciência. (...) Ubu Roi tornou-se o retrato feroz e grotesco dos vencedores, a imagem fiel do monstro que domina os homens, por ter pedido a humanidade. (...) Ubu tem enorme barriga, não toma banho, come com uma cupidez animal. Está de pé a figura rabelaisina, com um vigor que não se pode conter nos cenários convencionais do teatro. Além de todas essas características, Ubu é contagiante de simpatia, comunicativo, extremamente "popular". O escárnio maior de Jarry é fazê-lo sempre vitorioso, condenado ao sucesso..." [MAGALDI, 1989, pp. 210-11]



Das imagens que me surpreendem nas minhas encenações, considero que a bufonaria da personagem Ubu, se identifica ao mesmo nível de tragicômica teatralidade a uma persona mais longínqua, seu oponente social e político, Penteu, soberano de Tebas, personagem de As Bacantes de Eurípedes.

Na tragédia escrita pelo pai do moderno teatro ocidental, a origem está no debate entre as leis e a ordem emanadas do estado e a dinâmica de uma religiosidade comprometida com a irrupção do inconsciente.

Eurípedes orienta o enfrentamento tipificando-o através dos conceitos emitidos pelas duas personagens. Os corpos e os gestos de Penteu e Dioniso se apresentam como um vocabulário, passíveis de traduzirem a intimidade mais remota dessas personas.

No movimento e na máscara do deus dir-se-ia repousar os gêneros sem conflito algum. Já em Penteu, a feminilidade é expulsa de sua personalidade e com ela os indícios gestuais.

O ritmo autoritário e unificado com o qual, ele se posiciona, o torna presa fácil para o múltiplo Dioniso.

Numa atmosfera circense, o deus, um Augusto seria e o outro, em Branco clown se deixaria expressar.

A geografia da exceção que circunda Ubu, sua louca necessidade de usufruir as vantagens de ser um governante, é arremedo e fazem-no soar como antítese complementar do soberano de Tebas; Ubu, sombra em negativo de um Branco. Apesar disto, sua personalidade popular e carismática faz com que ele estabeleça sobre nós, espectadores, aquela admiração com a qual nos vemos assistir aos clowns augustíssimos. (3)

Todo gesto é estranho quando desmembrado de seu entorno. Um recorte abstrato adquire, apenas em parte traduzível, tornando-se mesmo, irreconhecível, quando amputado de sua origem. Tão remoto quanto perturbador é o seu significado. Distanciando-se do motivo central, no remoto e no aparentemente sem importância, é que o método faz... Sentido. (...)

In AS ARBITRARIEDADES DO INCONSCIENTE - A TESTEMUNHA CRIATIVA NAS ENCENAÇÕES. EDIÇÃO cia do chiste 2012





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